Uma das questões mais controvertidas do moderno Direito das Famílias é saber diferenciar os namoros contemporâneos das uniões estáveis. No passado, essa distinção era feita de uma forma mais fácil, mas com a alteração dos costumes e o aumento da liberdade sexual, muitos namorados passaram a dormir juntos, dividir contas, fazer investimentos conjuntos ou, até mesmo, morar debaixo do mesmo teto, o que tornou bastante difícil essa diferenciação.
O namoro é uma relação afetiva entre duas pessoas sem que haja consequências jurídicas, como direitos de ordem patrimonial na separação ou na morte, já a união estável, por ser reconhecida pela Constituição Federal como uma entidade familiar, gera a necessidade de divisão do patrimônio comprado durante a relação (salvo se o casal tiver celebrado um contrato pactuando coisa diversa), direito à pensão alimentícia (desde que presentes as condições legais) e, também, direito à herança, na hipótese de o falecimento ocorrer durante o relacionamento.
Para a configuração de uma união estável, a lei não exige que os companheiros morem juntos, não fixa prazo mínimo de relacionamento, não exige filhos comuns, nem tampouco a necessidade de formalização da união por meio de escritura pública ou contrato particular e essa falta de objetividade, ao invés de facilitar a vida das pessoas, tem causado muita insegurança, especialmente nos casais que temem que um mero namoro possa gerar direitos e deveres indesejados.
No ano de 2015, o STJ teve a oportunidade de julgar o Recurso nº 1.454.643-RJ 2014/0067781-5, em que se debatia essa diferenciação entre namoro e união estável. O recorrente alegava que os mais de dois anos de relacionamento que antecederam o casamento teriam sido de namoro e não de união estável. A questão foi levada ao Judiciário porque o recorrente havia adquirido um imóvel sozinho e a recorrida pleiteara a divisão do bem, alegando que eles já viviam em união estável.
Segundo os autos, quando o casal namorava, ele aceitou uma oferta de trabalho e mudou-se para o exterior, tendo ela se mudado logo depois, para viverem juntos no mesmo imóvel, quando acabaram ficando noivos. Ao retornar ao Brasil, o recorrente comprou, com dinheiro próprio, um apartamento para que ambos residissem, e casaram-se sob o regime da comunhão parcial de bens, divorciando-se dois anos depois.
A ex-mulher, alegando que no período entre sua ida para o exterior e a celebração do casamento teria vivido uma união estável, requereu, além de sua declaração, a divisão do apartamento. Tal pedido foi negado pelo relator do processo, que entendeu não ter havido uma verdadeira união estável, mas um namoro qualificado, que ocorreria quando o casal tem um relacionamento público, contínuo e duradouro, mas projeta apenas para o futuro a intenção de constituir família.
Em outro julgamento realizado em 2015, pela 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação nº 0014396.19.2013), ficou decidido que se a namorada não possuía a chave da casa do falecido e não deixou lá nenhum objeto pessoal, estaria claro que o parceiro não tinha a intenção de constituir família, havendo um “simples namoro com o falecido”.
Diante da pouca diferenciação prática entre os namoros e as uniões estáveis, muitos casais que têm relacionamentos públicos, contínuos e duradouros, têm assinado contratos de namoro para deixarem registrado que apesar de namorarem, não têm a intenção de constituírem família, portanto, em caso de separação, não haveria direito à divisão de bens ou alimentos e, em caso de morte, não surgiria o direito à herança.
Sabemos que a vida é dinâmica e as relações muitas vezes evoluem para algo mais sério, portanto, mesmo que no momento da assinatura do documento, o casal apenas namore, esse contrato não terá o poder de “proteger” seus signatários, se a relação tiver se modificado, virando uma união estável, pois preponderará sempre a realidade, independentemente do que foi assinado.
Diante dessa possível evolução das relações, alguns advogados, tem orientado seus clientes a assinarem contratos anualmente. Há casais que, inclusive, filmam o momento da assinatura do contrato, para que fique claro que eles o celebraram de forma voluntária e consciente, sem qualquer espécie de coação ou engano.
O Colégio Notarial de São Paulo constatou um incremento de 54,5% na realização desses contratos no último ano, especialmente em tempos de pandemia e há casais que deixam registrado, inclusive, qual será o regime de bens a reger a relação, na hipótese de o namoro evoluir para uma união estável ou de ele ser assim declarado pelo Poder Judiciário.
Ainda há grande debate em torno da validade jurídica desses contratos e apesar de não haver muitas decisões judiciais sobre o assunto, podemos citar um importante precedente julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que negou o reconhecimento de uma união estável, levando em consideração, além de outras provas, a existência de um contrato de namoro assinado pelo casal.
O relator do caso mencionou que os litigantes convencionaram um contrato de namoro cujo objeto e cláusulas não revelam ânimo de constituir família” (TJSP – Apelação n. 9103963-90.2008.8.26.0000. 9ª Câmara de Direito Privado. Relator: Grava Brasil. Data de julgamento: 12/08/2008).
Apesar dessa e de outras decisões, ainda não há uma posição consolidada sobre a validade desses contratos, entretanto, cada dia mais namorados procuram os cartórios para celebrá-los, visando obter algum tipo de proteção jurídica aos seus relacionamentos, mas é sempre bom reiterar que as regras que disciplinam a união estável são consideradas normas de ordem pública e não podem ser ignoradas por um simples contrato, portanto quando a realidade do relacionamento for contrária ao declarado na avença, esse contrato será fraudulento e, portanto, não produzirá nenhum efeito.
Tânia Nigri
Tânia Nigri é especialista e mestre em direito econômico, advogada pública federal, psicanalista, membro do IBDFAM- Instituto Brasileiro de Direito de Família e autora dos livros “União Estável”, “Herança” ,“Contrato de Namoro” -publicados pela Editora Blucher e “O Sigilo Bancário e a jurisprudência do STF, publicado pelo IASP- Instituto dos Advogados de São Paulo.